A minha infância mora numa casa velha de pedra, habitada por mais de cem anos de história. Lá mora acompanhada do meu pai ainda vivo, o meu pai que leva torpemente a diminuta mão da minha infância agarrada nas suas enormes mãos de trabalhador incansável.
Moram também lá um avô especialmente sensível à arte e ao espírito (que é quase como dizer a mesma cousa), um avô que acompanha as minhas letras infantis com um entusiasmo de avô emocionado, uma avó fisicamente desconhecida mas muito próxima de mim e a minha vida. E vivem também, uma tia avó que tenta parar com um pano o sangue das feridas duma mordedura de cão no meu rosto infantil.
Procurando bem, encontro dous irmãos que brigam e brigam sem parar ante os estupefactos olhos da minha infância que não compreende que podam brigar querendo-se tanto, e que podam depois da briga voltar a rir e brincar juntos, unidos por um invísivel cordão umbilical.
E vive uma irmá precozmente responsável e preocupada por mim, pola minha infância desorientada e a minha adolescência muito mais desorientada ainda.
Pairam por lá também a adolescência revoltada e uma juventude em que aos poucos todo ia tomando o seu lugar. Centos de leituras extravagantes em lugares ainda mais extravagantes (no prado com as vacas, sentada em cima da erva seca, com as costas no palheiro...). E um incontável número de festas populares com todos os anversos e reversos possíveis.
Hoje, a minha infância, o meu pai ainda vivo, o meu sensível avô e a avó desconhecida, a pequena tia avó e todo o resto, ficaram sós na casa de pedra, e um pouco sem abrigo. E eu sou a que sinto desamparo.