Cada noite desligas a luz e nessa escuridão começa a estranheza. A estranheza de ter passado um dia mais, cumprindo com as rotinas e os horários como se isso fosse a vida. A mesma estranheza de estar viva. De ir acumulando dias, e noites, e anos. De viver cada dia sem ser consciente.
Cada noite desligas a luz e a certeza desaparece. Na escuridão estás soa, como estarás na morte quando chegue o momento. E essa solidão abre um abismo. Há como um segundo em que parece que vas alcançar a verdade. Um breve instante em que parece que compreendes.
Então caes no sono. No dia seguinte acordas sem memória desse instante.
Madrugada afora, passo os olhos polas linhas borradas do último libro. Formigam as letras incompreensíveis a excepção duma palavra. Buganvília. E uma explosão violeta muda a cor dos meus sonhos. Será essa buganvília lida tantas vezes nos livros de Clarice a que habita as noites. Haverá uma casa pintada de branco luminoso e um quintal. Apenas uma pranta de tomate com os frutos vermelhos a apontar a delícia. E uma buganvília. Pode que a vida esteja perdendo a sua luminosidade, anegada de jornais e brilhos piscando nos écrãs. Entretanto, os meus sonhos têm buganvílias.
Do sorriso, bobo, que tés na cara a passear pola cidade. Uma cidade quase desconhecida, quase grande, quase cosmopolita. E tu sozinha. Com uma solidão escolhida de entre todas as possibilidades. Caminhar. Quase perder-se. Porque os quases te protegem do pánico atávico de menina de aldeia. Uma menina que cresce de repente para o mundo. Quase estrangeira. Num estato de ambigüidade que te mantem em segurança. Os olhos de primeiros dias, de começo. Desejas olhos nascentes de novo. Por isso, a volta aos antigos aparece como uma leve dor sem localizar. Uma pequena picada dum insecto que molesta mas não fere. Esse insecto deve manter-se. Ficar contigo até os quases desaparecer.