Como um animal selvagem e territorial, preciso a sensaçom de espaço sagrado e íntimo para morar nele. Não é suficiente com estar, preciso pertencer. Igual que quando volto à aldeia e os carvalhos e os castinheiros fecham a estrada de lado a lado, e tenho que aspirar profundamente ainda que vaia dentro do carro porque isso ali são eu.
Há uma parte de mim fora do meu corpo, uma parte que é capaz de misturar-se com os cheiros e os sons da terra. Essa é a única parte que não está em perigo. Quando tudo parece mover-se cara o abismo, quando o meu SER começa a empoderar-se de tudo e começa a asfixia, posso simplesmente plantar-me (PLANTAR-ME) na praia olhando o mar. Ali onde tudo tem sentido e cada cousa tem o seu lugar. Onde existe uma harmonia absoluta em cada som, em cada movimento.
Se existe um deus, mora nesse som.
Há dias que gostava de nom ter passado, de nom arrastar o peso de dúzias de histórias nas costas e mesmo nom ter História. Que nom pesasse nada do que pesa, que nom houvesse medo nem vergonha, que nom houvesse que dizer sexo quando queremos dizer amor. Atirar a máscara, abandonar essa imagem de adulta, autónoma, independente e mostrar-me sem pele, em carne viva para que qualquer um pudesse experimentar. Passem e vejam! Toquem. Nom há mais nada, apenas carne. Carne com desejo. Nom qualquer um, mas esse um, outro, aquele polo que hoje o estômago nom tem paragem. Tenho na palma da mao umha estúpida carícia que nom dei, um punhado de palavras que nunca tivem coragem de falar. Tenho umha bofetada contida que dói inutilmente, umha aperta espessa que nom era para mim. A minha particular cartografia do fracasso.
Há dias como hoje que gostava de cortar as maos, serrar polos pulsos aos poucos, centímetro a centímetro. Atirá-las longe e esquecer que há umha vida nelas, vestir os cotos com luvas, esterilizadas. Quem me dera umha mao virgem. Umha mao sem carícia dolorosa, sem relatos em terceira pessoa que falam de mim, sem ansiedade roída nas unhas, sem a forma do lápis no indicador. Umha mao virgem para deixar-se levar acompanhada, nem acolhedora nem recolhedora. Cada linha um caminho do passado, escondida por capas e capas de cremes hidratantes, suavizantes, a amolecer a novela da vida, o novelo. Retirando cada capa desaparecem os amantes, os desprezos, as filhas, os projectos, as línguas, os momentos sol, os esquecimentos, o amor. Leva-a, traduze-a em nada. Devolve-ma em branco. Ainda que o mapa silencioso de umha vida sem passado seja o Nada. Devolve-ma lisa, definitivamente eu, por fim eu, despossuída. Essa grande mentira que sou agora, com a mao limpa, sem linhas, sem caminhos. Que me devolvam a minha mao. A minha particular cartografia do sucesso.
(Texto feito para a peça: O recolector de maos, de Mauro Trastoy -www.trastoy.com-)
Tomando a vida demasiado a sério, achando que esta carne é realmente importante, que o drama quotidiano significa algo. A sério de mais, pensando ser importante de mais.
Hoje, amanhám, depois de amanhám vou procurar o menos. Sem peso. Olhar na frente, ser o que são diante do mundo: um nada. Hoje, amanhám, depois de amanhám, vou caminhar mais leve. Sentir apenas o alento do mundo. Ser apenas o alimento. Ser menos e sentir mais.