Por uma única vez fui capaz. Na tua frente. Olhando-te directamente meti-me nos teus olhos e vi através deles. Vi exactamente o que tu vias. A cicatriz na tempa esquerda, o nariz longo, um pouco desmesurado mesmo, a boca pequena mas definida, presente, o queixo bicudo. Vi a cara angular, imperfeita, fermosa. Depois fixei-me nos olhos, enmoldurados por umas celhas mal depiladas. Vi as pupilas castanhas e o íris preto e grande, vi além da olhada linda, além dos olhos bonitos. Vi-me na beira do abismo. Então compreendi por que tés medo.
Apenas uma mão apoiada no começo das costas, ocupando o oco da coluna vertebral. Uma carícia leve, que toca o rosto ao passar como ao acaso, e um sorriso nesse exacto segundo em que a olhada se cruza. Um passeio na praia escolhendo cunchinhas para um hipotético adorno no salão, um adorno que nunca será. Atirar dos cabelos como para fazer dano mas sem fazer, uma festa na cabeça. A gargalhada limpa por esse motivo que só tu e ela no mundo podedes conhecer. Uma mensagem ridícula no caderno em que fas a contabilidade doméstica, "you are so beatiful". A repetição de novo de outro lugar comum, outro tópico que é mais uma vez a verdade.
Às vezes saem tantas e tão fácil que por um momento é possível acreditar que existam, que realmente tenham algo que dizer. Ou o que é o mesmo, que tenha algo que dizer. Só que a maioria dos dias do ano, a maioria dos dias deste ano estão em silêncio. Faço força para que saiam, atiro delas porque necessito que se formem. Às vezes apanho uma caneta e apoio no papel, sabendo que a mão acabará por mover-se e dar-me algo. Mentiras. Mas algo do que pido ao fim. No entanto estão dentro de mim e ocupam muito espaço. Cada vez que me movo sinto como encaixam de novo, como o puzzle que devem ser milhares de palavras por dentro do corpo. Deve ser por isso que tenho que mover-me lentamente, com cuidado de não magoá-las, ou o que é pior, de provocar que assentem definitivamente. Estão aí quase como um fantasma, só que eu sei perfeitamente que não há nada de sobrenatural em estar cheia de palavras. E não vão sair. Apenas porque nada do que tenho para dizer se pode dizer com palavras.
Nunca perder a perspectiva. Quando te sentes desgraçada porque as pessoas à tua volta desaparecem, porque algum desafortunado acidente che toca a ti, porque tes que trocar uma semana de férias por uma obriga familiar que che chupa a energia draculianamente. Em qualquer circunstância segues sendo a mesma e segues sendo igual de afortunada. Não perder a perspectiva.