Um dia acordas com o sentimento de finitude colado ao corpo, e a morte torna-se uma realidade tangível, quase podes tocá-la.
Sempre foi assim, desde pequena quando dormias com o avô e acordavas de madrugada com a ansiedade dele ter morto. Então deixavas de respirar só para ouvir o seu alento e aquele assubio dos pulmões veteranos devolvia-te à calma. Ou ainda mais pequena a primeira vez que esse mesmo avô te levou velar o cadáver da tia e ficache olhando aquela diminuta imagem amarela, pensando que ela não podia ser aquela boneca, que já não estava ali e o lugar em que estava era, de facto, mais parecido com a luz e com o céu.
Ou cada vez que um morto da tua família te visitava nos sonhos dos dias seguintes e, apesar do desassossego que provocavam em ti, sempre traziam uma mensagem de paz. Faziam um carinho na tua cabeça ou sorriam simplesmente porque ninguém podia vê-los além de ti, sorriam agradecidos porque os olhavas e fazia-los existir com essa olhada.
Quando o pai morreu e com ele a criança que ainda ficava nos teus trinta e um anos imaturos. E quando a partir daquele dia a presença do teu pai foi cada vez maior e mais próxima, e com ela, a de todos os mortos anteriores que voltaram a ti tranquilos e sorridentes só para lembrar-te.
Sempre foi assim.
Só que hoje, a morte é a tua. E essa segurança tangível é apenas uma afirmação da vida.
Voltar a sonhar é como voltar a ler a Cunqueiro. A lógica da fantasia, a magia, impõe-se no mundo e essa verdade é a verdade mais real. As minhas noites estão cheias de personagens extravagantes tornados nos seres mais naturais. Movem-se polos sonhos com a sua lógica patafísica onde nada é o que parece. Ou melhor. Onde tudo é exactamente o que parece. Enchem-me de vida. Estou habitada polo melhor dos mundos possíveis. Acordo rindo e cheia de energia porque a saúde está voltando e o ruído foge.