Terça-feira, 30 de Maio de 2006
Viver é incompatível com escrever. Pelo menos em simultâneo. As emoções precisam um tempo de digestão, mastigá-las, degluti-las, digeri-las e mesmo, se for preciso, vomitá-las. Então sim, então podes fazer discursos, transformá-las em palavras, falseá-las, dar-lhes formas variadas, perverti-las. Enquanto as vives, nada se pode dizer, nada que faça justiça à verdade. Como se a verdade existisse.
Terça-feira, 23 de Maio de 2006
Geografia oral que se escreve, uma língua que se despide enquanto fica o corpo, ter sono e não dormir, ter vontade e não fazer, deixar o tabaco com um cigarro aceso, sorrir mesmo depois de ler as notícias, zangar-se com um meninino bonito, dar e não deixar-se receber, beijos sem língua, um só braço no abraço, piscar um olho estando só...
Não saberia viver a coerência.
Sexta-feira, 19 de Maio de 2006
Nunca dizem o que querem dizer. Nem a mesma palavra significa a mesma coisa em momentos diferentes. Se reparáramos, ficaríamos mudos para sempre a ler linguagens menos mentirosas. Afortunadamente, ninguém repara e conversamos.
É um cheiro que não se ve mas que se sente, é um cheiro transparente que chega à toda a gente. Redondo, vidroso e bem cheirosos. Mas quando se aproxima à gente, fuge na procura dum lugar menos quente.
É um cheiro caloroso, chega com gosto e vira vermelho o rosto.
Cheiro a esfera. Que desgosto!
Quarta-feira, 17 de Maio de 2006
Difícil de acreditar. Todos os meus desejos para este dia feriado: estar só na casa, um bocado de ioga e leitura no parque mais bonito do mundo. O bom dos desejos de medida minúscula é que se conseguem.
Domingo, 14 de Maio de 2006
Fazem parte do meu corpo, são uma extremidade mais que comunica directamente o coração e o papel. Há algo de ritual no facto de escrever manualmente, há também algo de coreografia, de dança, de sexo. A caneta riscando o papel soa a sinceridade. É algo físico, algo primário que fai parte de ti como a comida.
Se for pluma, é um prazer sibarita.
Quinta-feira, 11 de Maio de 2006
Como. Tenho um pedaço de pão de trigo untado de azeite. Está apoiado na beira dum prato, deixando sítio para o presunto e o pemento vermelho. O processo da comida tem fases. Como o amor. Como a literatura. O antes é a vista. A composição do prato, pão à direita, presunto à esquerda e mais à esquerda o pemento vermelho. E um fio de azeite, ocre, a escorrer polos bordos do pão deixando um rasto premonitório.
Depois é o tacto, abrir a mão no ponto exacto para dar alcance à fatia. Apanhar o presunto entre os dedos, sentir a gordura salgada entre o indicador e o polegar. E com o garfo, colocar tudo acima do pão.
Então é o olfacto. O odor a azeite, azedo. A presunto, salgado. A pemento, picante. As glândulas começam a salivar, a boca enche-se de água e nom é uma metáfora má.
Apoio a fatia de pão nos dentes, um pedacinho de presunto a tocar a ponta da língua transmitindo as primeiras sensações gustativas. Fecho a boca sobre o conjunto e é o ouvido. O estalar da códia do pão, o ranger dos dentes.
Então sim, é o gosto. O azeite a escorregar agora entre a língua e o padal. A textura mole do pemento a desfazer-se, aos poucos, viajando por todo o oco bucal. Entretanto, a mandíbula fai o seu trabalho, mobilizando a dentadura a triturar. O presunto desfia-se para ir mesturar-se com o pemento e o pão. Todo junto, na boca é uma festa de suavidade, sal e picante. Uma festa de líquidos a escorregar pola garganta. Uma festa.
[Longe, afastada, muito afastada, na TV, a gente morre. De fome.]
Quarta-feira, 10 de Maio de 2006
Procuro abridor de cunchinhas. Serve também abridora. Deve ser delicada, não fazer dano e não ter pressa. Caminhar amodo não apenas pela praia, também pelas ruas da louca cidade. Deve estar pronta para as mais variadas cunchinhas, valem todas as cores, tamanhos e formas.
Se não encontrasse especialista, conformarei-me com coleccionador de sonhos. Que coleccione um em que abra cunchinhas de cores, amodo, nas loucas ruas da cidade .
Sábado, 6 de Maio de 2006
Tenho um fecho ecler em vez de coluna vertebral. Abre e fecha peça por peça apanhando pedaços de pele, de carne, fazendo um bolinho de massa laila_lilás. Essas vezes o pescoço chega-me ao joelho e não há diferença entre ambos, confundem-se e não sei quem aguenta das pernas ou da cabeça. Não sei onde se apoia a ideia nem se o ventre tem algum ponto de apoio para mover o mundo (o meu).
Depois, degluto o bolinho laila_lilás com um bocado de álcool, algum amigo e um pouquino de amor. E o fecho ecler torna de novo coluna vertebral.
Sexta-feira, 5 de Maio de 2006
O mais fácil, o mais simples, o mais natural, o essencial.... é sempre o mais difícil de conseguir.
- Não pensar.
- Ficar quieta.
- Fazer apenas uma coisa de cada vez.
- Ir devagar.
- Amar apenas.