Ao meu pai.
Apenas restavam três dias para ele morrer. Assim pensado, o facto poderia ser motivo de dor e mesmo desesperaçom. Nom era novo, mas tampouco um velho enfermo com probabilidades avondas para ter os dias contados. Mas ninguém estava desesperado. Nem ele, nem a sua família: a mulher, os filhos, a irmá, primos... Ninguém sofria porque ninguém sabia que em três dias, o homem, morreria num estúpido acidente, só e fulminantemente.
Aquele dia estavam de festa. Já se sabe, festa do patrom. Muita comida, jantares que se alongam horas, sobremesas impossíveis de digerir depois de ter já ingerido três ou quatro pratos de abundosas viandas. Mas ninguém se arredou, comeram-se as sobremesas e os seus correspondentes cafés com gotas. O tema do dia: a idade, agora nom é o mesmo, bem vedes, tudo nos leva mais tempo, somos torpes, já nom sabemos fazer nada. Tema aborrecido para quem, como eu, já o escutara quase cada semana e aliás, nom acreditava nele. O homem sorria, nom dizia nada mas sorria. Falava-nos calando, como tantas vezes. E nom o fazia misteriosamente, nom era um sorriso cínico de quem sabe mais. Apenas sorria aceitando, aceitando-se e negando cara os demais um sofrimento que, certeza, havia tempo que figera ninho na sua cabeça. O tempo. A idade inevitável. A fraqueza. A ausência daquela força que deixara pouso nas maos como pegada inapagável. Àquelas maos que eu, a que nom acreditava, vira tantas vezes curar com cola para que as gretas do frio nom doessem e permitissem trabalhar.
Mesmo aquele dia de festa, a alegria tornara cansaço e a volta à casa uma brincadeira mais com o homem que já nom sabia, nom podia, andar direito. Aquela noite nom ceamos juntos. O estômago nom permitia que comêssemos nada mais, cada um decidiu uma soluçom digestiva diferente: menta poleio eu, maçá o homem, copo de aguardente a mulher. Porque nom tínhamos motivo para a dor, porque nom sabíamos que aquela noite era a última que pudéssemos brincar com o homem polo seu arrastar as sapatilhas, a última noite que o homem se fosse à cama quase sem avisar, desejando boa noite e até amanham se deus quiser.
Tampouco sabíamos no dia seguinte, quando a despedida, que aquela ia ser a última. Que os beijos que nos dávamos com a promessa de telefonar-nos, de ver-nos em breve, dentro de quinze dias ou três semanas, como sempre, iam ser os últimos. Que nom ia haver mais como sempre porque dois dias depois, o tractor que levava conduzindo quase quarenta anos, ia pousar-lhe a roda por cima das costelas, deixá-lo sem ar e sem tempo para pedir ajuda ou para que a mulher pudesse vê-lo uma última vez com vida.
Apenas restavam três dias para ele morrer e estávamos de festa. Ele, o homem, e a família: mulher, filhos, primos... E nem a digestom interrompida pola notícia ao telefone, nem as lágrimas que a sua morte produziram, nem os desejos, as perguntas, as maldiçons pola injustiça. Nem a dor. Nada vai fazer que tiremos da nossa memória o sorriso silencioso dum dia de festa que foi o último, o sorriso e o silêncio, a sua pegada para sempre.