Da conceição do tempo perdimos as antítesis: fim de semana deixou de opôr-se a semana e pudemos, por fim, viver um dia atrás de outro; mudamos a ordem das enumerações: pequeno almoço, almoço, lanche e ceia foram virando e dando voltas até que a comida aconteceu com a fome. O dia voltou a contar-se pela luz e a noite pela escuridão, mas os dois viraram silêncio e ocultaram todas as onomatopeias. Os paralelismos tomaram conta de nós e todo começou a ser "como aquela vez", só que aquela vez nem sequer éramos vivos e o paralelismo tornou então apenas um símbolo. E de símbolos enchemos as janelas.
Entretanto, todos nós andamos na búsqueda da metáfora perfeita que dé sentido. A vida, no fundo, não é apenas uma retórica vazia.
Já o diziam os filósofos: só no movimento podemos pensar. Ninguém teve paciência para saber se as filósofas opinavam o mesmo, talvez elas se tiveram que conformar com pensar confinadas nas suas domesticidades. Agora que estamos todas (e todos) confinadas, faço minhas as suas palavras. Só no movimento se pode pensar.
Limitada pelo meu corpo limitado à sua vez pelas paredes, o meu pensamento reduz-se a mim mesma. Quem sou, que sinto, que faço, por que é que sinto desta maneira e não outra... Eu sou uma matéria previsível e desinteressante que se repete a si própria sem pudor. Tento sair de mim mesma e só alcanço a ver outros eus que se repetem a si próprios sem pudor. No meu sonho mais repetitivo do confinamento, perco os limites do meu corpo sumergida em qualquer mar. Só a isso é que aspiro.
Então descobres que existe uma vida aí fora. Uma vida que cheira a terra molhada e a relva. Uma vida em que os limites se expandem e aquilo ao que chamas de eu torna diminuto. A massa cerebral que tinha tomado conta do teu mundo assombrando-o começa a desaparecer, engolida polo cheiro a outono. Aos poucos abre-se espaço para o piar dos passarinhos e o barulho das crianças. Até o frio húmido da tarde alia-se aos outros elementos para devolver-te à vida.
A gente se diverte à tua volta. Às crianças brincam ante a emocionada olhada dos adultos (vídeo mediante). Um grupo de dançarinos amadores desafiam o pudor ante um público escasso e distraído. Os casais amam-se das formas mais diversas e sempre novas, mesmo nos tópicos. Adolescentes que descobrem o seu corpo lembram-che que a nora ainda se move.
Até parecera que não existe fome, morte, lume e ambição. Apenas um pedacinho de vida palpitando neste jardim de outono.
Vou pra trabalhar e a festa ainda não acabou. A estação do trem é um lugar de passo entre a rave que ainda mantém uma música tecno estridentemente alta e a casa. São as 8 de uma manhã ainda fresca. Aproveitemos estes minutos de nuvens antes de maldizer o verão tão desejado. Surpreendo-me pensando como a adulta chata que sou. Entre a questão filosófica de tentar entender a onde vai a humanidade e a lembrança de que eu fui uma dessas em uma juventude não tão afastada. Talvez com menos tecno e menos drogas. Questão de gostos.
O final de festa desfila ante mim. Para mim. Enquanto espero o trem que atrasa no dia feriado aquelas pessoas vieram fazer o seu espectáculo para mim. Sozinha na estação, observo a sua coreografia como um filme ao que tenho o privilégio de assistir. Aquele casal que briga com um excesso de gesticulação faz pra mim. O homem de barba tem um ar teatral em cada aceno. O outro, o mais magro, parece especialmente magoado. A sua briga não tem contenção. Sorrio. Gosto da minha fantasia apenas justificada.
O grupo de moços que passa agora falando alto é também um grupo planificado com atenção. Caminham distantes os uns dos outros e isso faz com que tenham que falar cada vez mais alto. Gritam. Diria-se que atiram a sua alegria para mim que devo continuar mantendo a engrenagem.
Tem duas meninas que caminham em silêncio sustendo com dificuldade um resto de cerveja num copo de plástico. Por muito que tento não consigo imaginar qual é a sua história, tal é o inescrutável da sua expressão.
Passam mais e mais pessoas soas ou em grupo diante do meu corpo machucado de insónia. É feriado e neste tempo precioso de espera a cidade é minha.
Ontem morreram mais de 50 pessoas num ataque homofóbico num clube dos EEUU. O terrível sucesso chegou a nós quase ao mesmo tempo que acontecia. Aos poucos minutos conhecíamos as conversas de whatsapp que algumas vítimas tinham com a sua família antes de ser atingidos. A sensação de terror é muito forte. Em breve, as redes enchem-se de mensagens de condena e solidariedade.
Ante ontem, aparece o corpo sem vida da mulher desaparecida em Santiago. As primeiras investigações dizem que foi acidente, parece que desta vez polícia, juiz e forense foi mais rápido que as próprias redes sociais. A conclusão véu rápido, quase sem dar-nos tempo à indignação.
Na semana passada apareceram mais de cem cadáveres nas areias do Mediterrâneo, sofremos e indignamo-nos. Não há ninguém alheio ao sofrimento. Dura aquele minuto em que lemos a notícia mas não há espaço para muito mais. Chega a seguinte notícia para a comoção. Sim, eu também estou aqui, comovendo-me com as notícias, sofrendo e indignando-me ao ritmo que marca a actualidade.
No meio, alguém assiste ao concerto mais emocionante da sua vida e eu que também estava ali sinto a necessidade de mostrar a minha paixão. Mas de repente algo quebra e tenho que parar. Por um momento sinto que a dor não é minha, é só uma réplica das dores replicadas na grande aranheira. Eu sei, não faz diferença e a ninguém interessa, mas talvez deva procurar a minha própria dor e fazer algo com ela.
Talvez essa emoção não tem passado por mim, apenas tem atravessado o corpo como um vento frio. Rápido, sem deixar marca. Neste momento preciso sentir as marcas, os roxos na pele de cada mágoa. Não deixar que passe e venha o seguinte. Sentir. Com o tempo paralisado no horror. Com o tempo também paralisado na beleza quando acontece.
14/07/2015
Ainda que repetisse mil vezes a mesma viagem não me acostumaria nunca a esta ferida da cor. Essa fenda tão invisível como certa que separa aquelas quatro raparigas perfeitas na sua brancura, das duas mulheres pretas que, em uma alegria popular e alta falam no ónibus das conversas de facebook.
Nunca me acostumarei a esse mundo que coloca as perfeitas e inúteis moças brancas por cima das mulheres pretas que arrumam a sua casa. E ainda permite que riam na sua falsa superioridade da linguagem errada e colorida com que enchem o ónibus que compartimos de volta da praia.
Mas pior me acostumo a ser também uma rapariga perfeita e branca. Alinhar com as que rim embora não ache graça nenhuma. Alinhar do lado das que tenhem medo. Mais difícil sentir que essa ferida é tão funda que farám falta toneladas de concreto para apagá-la.
Não me conformo. Quero meter os meus braços bem no fundo dos lodos e jogá-los na cara de todas as raparigas brancas e perfeitas. Também na minha.
18/07/2015
Instalada no estranhamento vejo tudo com olhos de criança. Tudo é novo e os sentidos não são suficientes. Quando algo me magoa choro, como criança. Também a felicidade me alcança de uma forma simples. Na intensidade em que a pessoa amada vive o retorno. No carinho das pessoas que vou conhecendo e oferecem generosos abraços e beijos. Na vista da baía que resiste ainda à urbanização e se apresenta majestosa ante a minha olhada nova, de criança. No concerto intenso e concentrado, formoso. Tudo muito emocionante.
Às vezes preciso uma pausa. Só respirar e lembrar quem sou eu. Embora neste momento não há um eu a que agarrar-se.
19/07/2015
Na viagem tudo é presente. Às vezes o passado assoma como uma fraca ferramenta de comparação. Mas não há comparação possível e o passado esfuma. O futuro é apenas um tempo verbal em que formulas breves interesses práticos: "Vou sair comprar pão" "Amanhã iremos no Rio". Pronto, não há futuro além de amanhã.
Essa nova forma de configurar o tempo deixa-te entre o fascínio e a felicidade. A memória é só uma fonte de histórias divertidas com que encher as conversas. Os planos de futuro, um vício longínquo que não compreendes.
29/07/2015
A renovação. Parece que a limpeza do corpo ia acompanhada da limpeza de espírito. Na água transparente do rio viu as várias gerações de índios que desfrutaram de aquele lugar sem interrupções. Imaginou a felicidade de homens e mulheres que chegavam lá depois de longas caminhadas baixo um sol ardente. Viu, como se fizesse parte das suas memórias, as crianças brincando baixo a água da cachoeira. E foi feliz.
Esqueceu que aquele mundo já não existia e, muito provavelmente, não fosse possível nunca mais. Esqueceu das imagens arrasadas sob toneladas de progresso e ambição. Esqueceu o pessimismo quase atávico com o que convivia todos esses dias. Foi feliz como se aquela fresca água de rio trouxesse de volta aquele mundo.
e II
imprimir como tatuagem na pele a sensação de limpeza e renovação do banho. O rio entrou em mim além da carne. Um sentimento de eternidade alaga-me ao mesmo tempo que a água. Quero guardar essa lembrança impressa no corpo. Recorrer a ela cada vez que a rotina me atrapalhe, cada vez que o mundo bata em mim com a sua estúpida distorção dos valores. Cada vez que a vida se empenhe em esquecer a beleza.
23/08/2015
Transitar polas rotinas com a percepção da distância. Aquela velha cissão da menina voltando em cada lembrança. A dúvida. Sentir que talvez a essência da tua vida seja esse incomodo. Esse estar num lugar querendo estar noutro pra ir a esse outro querendo estar no primeiro. Talvez a motivação primigénia seja o desconforto.
Não acredito na beleza exacta das cousas. Nem cânones clássicos nem modernos. Não acredito na beleza emoldurada segundo um plano de perfeição.
A beleza em que acredito deixa-te apenas pendurado nesse instante. Trapassa qualquer percepção dos sentidos pra ir tocar-te mais adentro. A beleza em que acredito é uma carícia no coração.
Acredito que existe. E essa sua existência permite a minha. Nada neste mundo seria aceitável sem ela. Deste mundo asfixiante e pavoroso só nos salva a beleza onde ela está: na folha, na água, na lua, na canção, na poesia.
Há um barulho contínuo e cheio de luzes a ocupá-lo tudo. Não é apenas o som de vozes abafadas. É um ruído luminoso que ocupa o cérebro aos poucos. Despraza tudo, vai ocupando os cantos todos apesar da tua resistência. Lutas com força por fechar olhos e ouvidos. Esperas que esse gesto infantil te poupe do caos. Mas isto já não é brincadeira. Deixou de ser brincadeira muitos anos atrás e não percebeste. Na verdade, ninguém percebeu. Essa condição de massa não te consola.
Às vezes paras, com os pés bem fortes na terra, com a ilusão do silêncio e da quietude. É apenas uma fracção de segundo acreditando. Uma fracção de segundo em que és feliz.
É uma ilusão que não tarda em esvaecer. Com tanta falicidade que até machuca. Apenas uma fracção de segundo de felicidade tão frágil.
Chorarias. Mas o barulho volta a estar em toda a parte e não importa o quanto grites, o quanto reclames. Agora é tudo luzes e som.
Cada noite desligas a luz e nessa escuridão começa a estranheza. A estranheza de ter passado um dia mais, cumprindo com as rotinas e os horários como se isso fosse a vida. A mesma estranheza de estar viva. De ir acumulando dias, e noites, e anos. De viver cada dia sem ser consciente.
Cada noite desligas a luz e a certeza desaparece. Na escuridão estás soa, como estarás na morte quando chegue o momento. E essa solidão abre um abismo. Há como um segundo em que parece que vas alcançar a verdade. Um breve instante em que parece que compreendes.
Então caes no sono. No dia seguinte acordas sem memória desse instante.
Madrugada afora, passo os olhos polas linhas borradas do último libro. Formigam as letras incompreensíveis a excepção duma palavra. Buganvília. E uma explosão violeta muda a cor dos meus sonhos. Será essa buganvília lida tantas vezes nos livros de Clarice a que habita as noites. Haverá uma casa pintada de branco luminoso e um quintal. Apenas uma pranta de tomate com os frutos vermelhos a apontar a delícia. E uma buganvília. Pode que a vida esteja perdendo a sua luminosidade, anegada de jornais e brilhos piscando nos écrãs. Entretanto, os meus sonhos têm buganvílias.
Do sorriso, bobo, que tés na cara a passear pola cidade. Uma cidade quase desconhecida, quase grande, quase cosmopolita. E tu sozinha. Com uma solidão escolhida de entre todas as possibilidades. Caminhar. Quase perder-se. Porque os quases te protegem do pánico atávico de menina de aldeia. Uma menina que cresce de repente para o mundo. Quase estrangeira. Num estato de ambigüidade que te mantem em segurança. Os olhos de primeiros dias, de começo. Desejas olhos nascentes de novo. Por isso, a volta aos antigos aparece como uma leve dor sem localizar. Uma pequena picada dum insecto que molesta mas não fere. Esse insecto deve manter-se. Ficar contigo até os quases desaparecer.
Como soterrada por toneladas de areia, a vida pesa e sufoca. Mas não há nada mais fácil do que tirar uma areia de cada vez, libertar cada dedo do pé aos poucos, ir sentindo o sol e o ar em cada centímetro de pele, voltar a respirar. Não há nada mais fácil do que acreditar, pôr-se de pé e saber que és forte, passar o que passar. Pôr-se de pé e dar volta à solidão, fazê-la companheira.
Sair do buraco e fazer com a areia que te enterrava uma fermosa escultura. Transformar a dor. Que fique na praia como lembrança das quedas, que fique como prova da impermanência. Essa areia que hoje dói por cima de ti amanhám dá prazer do teu lado.
Quando começas a contar o tempo polos anos que faz que morreram os seres queridos. Quando a manhã começa a ser mais fermosa quanto mais cedo. E nem os teatros, nem as possibilidades fazem estranhar o asfalto. Cada dia mais necessário o tempo-Tardade. Mais importante a erva verde debaixo do teu corpo e o cheiro a terra. Mesmo o trabalho que antes despreçavas comeá a ser necessário.
O teu paraíso zem tem cor e cheiro, e dor de músculos.
só precisas da imagem dessa árvore solitária na beira do mar. Uma árvore elegante na sua sobriedade, austera, simplesmente enraizada lá, na beira do mar, na terra rochosa e areosa.
Assim, sem quase nada para permanecer mais do que a vontade. Sem vaidade, mas com firmeza.
Só precisas dessa imagem para saber que pouco é necessário para levantar-te sobre os teus pés, sobre as tuas próprias raízes. Apenas ficar um pouco afastada da miséria quotidiana, chorar com aquela profundidade higiénica e verdadeira que guardas para ti. Porque para ti é a tristeza de ver o poço e a sua fondura. Porque para ti é a felicidade do gesto de girar a cabeça, levantar a olhada e ver a luz. Porque para ti é a morte mas também a ressurreicçom.
Contar. Os dias que faltam para as férias. Os minutos até a próxima aula. Os anos já vividos e os que faltam por viver -se for possível. Pôr nomes. A tristeza que sentes ante a imoralidade do mundo. A raiva. A felicidade dum momento de silêncio e solidão. O prazer do vento e do frio.
E depois, parar e perguntar polas cousas verdadeiramente importantes. Nem nomes nem números.
A verdadeira revelação do passo do tempo não é a decadência física nem essa ridícula falta de energia para as banalidades. A verdadeira revelação dos anos é a consciência. A absoluta certeza de que cada acto tem um sentido certo, cada aprendizagem um tempo, cada tropeço uma recuperação.
A vida consiste só em encontrá-los: o sentido, o tempo, a recuperação. Quanto menos demore a búsqueda, mais tempo há para a plenitude.
As peças estão todas, com o seu desenho anti-geométrico e nada clássico. Mas alguém com um humor estranho colocou-nas numa desordem sutilmente programada. E agora ando tropeçando, como quem dança um tango com o pé mudado. Talvez o sentido da vida seja esse. Colocar as cousas no seu lugar e caminhar por fim inteira, com o peso exacto e a velocidade mínima. Consciente da tua importância -um pouco menos do que nenguma- e do inexorável erro que te vence.
Hoje há lua cheia e a nostalgia atingiu-me inesperadamente no centro do coração. Amanhã um aniversário, o aniversário da ausência do meu pai. Essa ausência que me colocou noutro lugar do mundo. Num lugar em que agora fico mais consciente do tempo e da inutilidade das cousas. Da inutilidade deste cansaço emocional que a lua cheia me traz para encima dos ombros.
Na outra vida, na quotidiana, na que tem horas e despertador, outro setembro me faz cair nos ciclos. Outro curso começa e a avidez e o entusiasmo do começo também me habita. Assim estou outro ano mais, movendo-me entre a vida e a VIDA.
Há cheiros férteis e intensos que voltam a ti embora o campo esteja ermo e já nada renasça na primavera. Há um arrecendo a tabaco nas rugas das mãos do avó doce anos depois. E uma música que ressoa agora que na casa já não fica nem corrente eléctrica. Memória. Aos poucos o tempo vai aumentando cara atrás e adoras essa sensação de nostalgia. Há uma plenitude de coração nessa olhada reconciliada. Por fim reconciliada. Saudosa não do tempo que se foi mas sim da lentidão.
Apenas lamentas um bocadinho que, enquanto o tempo se estica atrás de ti, vai-se encolhendo por diante. Lamentas um bocadinho que demores tanto em aprender agora que resta pouco.
As verdadeiras crises sempre levam a um nascimento. Poderia dizer: as verdadeiras crises sempre levam a um renascimento. Mas não acredito. As crises, as de verdade, fazem-te nascer de novo. Nada importa que o corpo seja o mesmo, que os pegadas na areia se repitam, que movas a mesma quantidade de ár ao caminhar. Nada importa. A pessoa que és agora é outra. Às vezes mesmo gostas mais da recém nascida, com as suas rugas na pele e as marcas das derrotas novas, e uma lasca mais na olhada para contar. Os cowboys faziam lascas das mortes dos outros, nada de mao em fazer lascas das mortes próprias.
A maior diferença de cada nascimento é o tamanho: cada vez és mais pequenina.
Um dia acordas com o sentimento de finitude colado ao corpo, e a morte torna-se uma realidade tangível, quase podes tocá-la.
Sempre foi assim, desde pequena quando dormias com o avô e acordavas de madrugada com a ansiedade dele ter morto. Então deixavas de respirar só para ouvir o seu alento e aquele assubio dos pulmões veteranos devolvia-te à calma. Ou ainda mais pequena a primeira vez que esse mesmo avô te levou velar o cadáver da tia e ficache olhando aquela diminuta imagem amarela, pensando que ela não podia ser aquela boneca, que já não estava ali e o lugar em que estava era, de facto, mais parecido com a luz e com o céu.
Ou cada vez que um morto da tua família te visitava nos sonhos dos dias seguintes e, apesar do desassossego que provocavam em ti, sempre traziam uma mensagem de paz. Faziam um carinho na tua cabeça ou sorriam simplesmente porque ninguém podia vê-los além de ti, sorriam agradecidos porque os olhavas e fazia-los existir com essa olhada.
Quando o pai morreu e com ele a criança que ainda ficava nos teus trinta e um anos imaturos. E quando a partir daquele dia a presença do teu pai foi cada vez maior e mais próxima, e com ela, a de todos os mortos anteriores que voltaram a ti tranquilos e sorridentes só para lembrar-te.
Sempre foi assim.
Só que hoje, a morte é a tua. E essa segurança tangível é apenas uma afirmação da vida.
Voltar a sonhar é como voltar a ler a Cunqueiro. A lógica da fantasia, a magia, impõe-se no mundo e essa verdade é a verdade mais real. As minhas noites estão cheias de personagens extravagantes tornados nos seres mais naturais. Movem-se polos sonhos com a sua lógica patafísica onde nada é o que parece. Ou melhor. Onde tudo é exactamente o que parece. Enchem-me de vida. Estou habitada polo melhor dos mundos possíveis. Acordo rindo e cheia de energia porque a saúde está voltando e o ruído foge.
Como um animal selvagem e territorial, preciso a sensaçom de espaço sagrado e íntimo para morar nele. Não é suficiente com estar, preciso pertencer. Igual que quando volto à aldeia e os carvalhos e os castinheiros fecham a estrada de lado a lado, e tenho que aspirar profundamente ainda que vaia dentro do carro porque isso ali são eu.
Há uma parte de mim fora do meu corpo, uma parte que é capaz de misturar-se com os cheiros e os sons da terra. Essa é a única parte que não está em perigo. Quando tudo parece mover-se cara o abismo, quando o meu SER começa a empoderar-se de tudo e começa a asfixia, posso simplesmente plantar-me (PLANTAR-ME) na praia olhando o mar. Ali onde tudo tem sentido e cada cousa tem o seu lugar. Onde existe uma harmonia absoluta em cada som, em cada movimento.
Se existe um deus, mora nesse som.
Há dias que gostava de nom ter passado, de nom arrastar o peso de dúzias de histórias nas costas e mesmo nom ter História. Que nom pesasse nada do que pesa, que nom houvesse medo nem vergonha, que nom houvesse que dizer sexo quando queremos dizer amor. Atirar a máscara, abandonar essa imagem de adulta, autónoma, independente e mostrar-me sem pele, em carne viva para que qualquer um pudesse experimentar. Passem e vejam! Toquem. Nom há mais nada, apenas carne. Carne com desejo. Nom qualquer um, mas esse um, outro, aquele polo que hoje o estômago nom tem paragem. Tenho na palma da mao umha estúpida carícia que nom dei, um punhado de palavras que nunca tivem coragem de falar. Tenho umha bofetada contida que dói inutilmente, umha aperta espessa que nom era para mim. A minha particular cartografia do fracasso.
Há dias como hoje que gostava de cortar as maos, serrar polos pulsos aos poucos, centímetro a centímetro. Atirá-las longe e esquecer que há umha vida nelas, vestir os cotos com luvas, esterilizadas. Quem me dera umha mao virgem. Umha mao sem carícia dolorosa, sem relatos em terceira pessoa que falam de mim, sem ansiedade roída nas unhas, sem a forma do lápis no indicador. Umha mao virgem para deixar-se levar acompanhada, nem acolhedora nem recolhedora. Cada linha um caminho do passado, escondida por capas e capas de cremes hidratantes, suavizantes, a amolecer a novela da vida, o novelo. Retirando cada capa desaparecem os amantes, os desprezos, as filhas, os projectos, as línguas, os momentos sol, os esquecimentos, o amor. Leva-a, traduze-a em nada. Devolve-ma em branco. Ainda que o mapa silencioso de umha vida sem passado seja o Nada. Devolve-ma lisa, definitivamente eu, por fim eu, despossuída. Essa grande mentira que sou agora, com a mao limpa, sem linhas, sem caminhos. Que me devolvam a minha mao. A minha particular cartografia do sucesso.
(Texto feito para a peça: O recolector de maos, de Mauro Trastoy -www.trastoy.com-)
Tomando a vida demasiado a sério, achando que esta carne é realmente importante, que o drama quotidiano significa algo. A sério de mais, pensando ser importante de mais.
Hoje, amanhám, depois de amanhám vou procurar o menos. Sem peso. Olhar na frente, ser o que são diante do mundo: um nada. Hoje, amanhám, depois de amanhám, vou caminhar mais leve. Sentir apenas o alento do mundo. Ser apenas o alimento. Ser menos e sentir mais.
O 25 de abril no coração... Num dia do homenagem estou de coração apertado. Tanto, que fico umbilical, lambendo as feridas que nem são tal. Tanto, que em vez de lamber feridas infrinjo-me alguma mais por se ainda não doesse suficiente a estultícia. A minha, sim. Também a dos outros. A do mundo, que é diferente da minha e por isso fai ainda mais dano. Talvez um dia, talvez não demasiado perto mas tampouco longe, aprenda a viver. E o que é mais importante. A morrer. Talvez consiga por fim, sem esforço, pegar na paz que tenho dentro e fazer que habite a minha alma. Só isso, pegar a paz que tenho dentro e tirá-la para fora dia atrás dia.
Uma gota de saliva para apagar uma língua de fogo, um abano de penas para mudar a direcção dum ciclão, a mão da criança segurando a terra que treme por cima dos 8.9, uma colher de sobremesa para conter um tsunami... Assim estamos nós, brincando a ter o poder, a mandar sobre a terra e os deuses, fazendo de conta. Agora tu eras o chefe e fazias fábricas e construias nas beiras dos rios e comias espaço às ondas do mar, agora fazemos de conta que os perigos não existem e levantamos infernos contidos em aço, segurados por cheminés para os azares. Fazemos de conta. Afinal há tanto lugar para onde olhar que ninguém consigue enxergar. Entretanto, há uma mapoula no jardim do vizinho que cresce indiferente. Demora dias em desabrochar, vai pedindo licença a todo o que é mundo e dobrega-se humilde, não estorva, não se impõe, não machuca. Mas as suas pétalas vermelhas afirmam a vida, o seu alento é a nossa esperança.
Se há salvação possível neste mundo vem da brisa. Uma brisa leve que acaricia os corações mas também forte, desse tipo de fortaleza que só nasce dos espíritos honestos. Se há salvação possível vem do lado da brisa que não é propriedade de ninguém e por isso mesmo pertence a todas. Mesmo a mim, que só passo de passo pola vizinhança. Se o mundo acaba, talvez a revolução necessária esteja nesses lugares pequenos, onde a comunicação é possível e vale mais a generosidade que outros desejos ou imposturas.
Por isso, obrigada (e obrigados).
Força para viver cada dia como se o mundo fosse outro, como se as cousas estivessem no seu lugar e não assim, tão deslocadas. Vontade para continuar amando cada dia e que isso seja suficiente para não cair no bordo do caminho, para não dessistir. Esperança para acreditar que um dia a debacle vai ser real e vai colocar tudo patas pra o ceu, é dizer, na sua verdadeira posição. Valor para deixar de aferrar-se ao pouco que temos como se isso fosse salvar-nos, a nós porque temos algo. Expectativa e medo por se quando chegue o momento vas estar à altura. O mundo precisa duma revolução, tu de valor para fazê-la.
Sem grandes festas nem fogos de artifício, sem fantasiar-se de nada e sem máscaras. Com a lentidão das cousas verdadeiras, com a calma que nem sempre é possível, com a paciência de saber-se tão pequena e tão importante, nessa precisa ordem. Com o amor das pessoas que fazem de cada ano uma felicidade maior. Assim, desta maneira, chegou o 2011.
A minha infância mora numa casa velha de pedra, habitada por mais de cem anos de história. Lá mora acompanhada do meu pai ainda vivo, o meu pai que leva torpemente a diminuta mão da minha infância agarrada nas suas enormes mãos de trabalhador incansável.
Moram também lá um avô especialmente sensível à arte e ao espírito (que é quase como dizer a mesma cousa), um avô que acompanha as minhas letras infantis com um entusiasmo de avô emocionado, uma avó fisicamente desconhecida mas muito próxima de mim e a minha vida. E vivem também, uma tia avó que tenta parar com um pano o sangue das feridas duma mordedura de cão no meu rosto infantil.
Procurando bem, encontro dous irmãos que brigam e brigam sem parar ante os estupefactos olhos da minha infância que não compreende que podam brigar querendo-se tanto, e que podam depois da briga voltar a rir e brincar juntos, unidos por um invísivel cordão umbilical.
E vive uma irmá precozmente responsável e preocupada por mim, pola minha infância desorientada e a minha adolescência muito mais desorientada ainda.
Pairam por lá também a adolescência revoltada e uma juventude em que aos poucos todo ia tomando o seu lugar. Centos de leituras extravagantes em lugares ainda mais extravagantes (no prado com as vacas, sentada em cima da erva seca, com as costas no palheiro...). E um incontável número de festas populares com todos os anversos e reversos possíveis.
Hoje, a minha infância, o meu pai ainda vivo, o meu sensível avô e a avó desconhecida, a pequena tia avó e todo o resto, ficaram sós na casa de pedra, e um pouco sem abrigo. E eu sou a que sinto desamparo.
Chegou o outono com força e pôs tudo melancólico, deixo-me arrastar por ele. O vento e a chuva sacodem tudo, e eu deixo-me sacodir com paciência. E também com gosto, por que não dizê-lo. Nenhuma lembrança melhor do que esta para sentir que estou viva: que os sentimentos se agitem por dentro e vaiam ocupando lugares diferentes. Aí os deixo, buscando o seu lugar no mundo, o seu assento em primeira ou segunda, não adianta intervir.
Um dia em que tudo soa a lamento, a um triste canto à própria tristeza, em que se estás sentada do lado direito queres estar sentada do lado esquerdo, e sentada do lado esquerdo queres estar do direito. Tomar essa decissão é a cousa mais difícil do mundo.
Um dia em que te sentes muito dramática tu que odeias o dramatismo. Em que afastas as pessoas amadas do teu lado. Em que as sensações viram presságios e qualquer conversa tem um milhão de significados que só tu és capaz de desvelar.
Um dia em que és capaz de acreditar em que o teu corpo não é só o teu corpo, é uma brúxula sem norte capaz de marcar o futuro, e criá-lo. Em que não tés força nem para mudar de lado na cama.
Um dia sem sol e sem lua.
à frustração de não ter mais poesia, de não encontrar já as palavras que descrevam a vida ou, o que é mais importante, a melhorem com a sua beleza, sem precisar nada mais do que elas
à ansiedade no estômago por essa fome do que não chega, confiada num futuro cada vez menos confiável, tentando acreditar ainda na própria possibilidade
à certeza de que algo quebrou no teu tempo e agora já não fica mais onde consertá-lo, e terás que viver o resto dos teus dias com um relógio com o passo trocado, a minutagem confundida
à sensação de perder a fe aos poucos, mesmo no sol que nos aquece e no mar que nos alimenta -a alma-
e ainda assim, ter a seguridade de que passará o dia e deixarei de estar colada.
A única rebeldia possível aqui e agora: não ter medo, apanhar as suas notícias e fechar ouvidos, não escutar as ameaças e, sobretudo, ser felizes ao seu pesar.
Dedicar uma noite à magia, visitar as fadas e deixar que as lembranças se apoderem de tudo, o teu avô, careca, velho, lavando a cara com água de rosas para manter a beleza, a casa cheia de milicroques e rosas nos buratinhos que o barro deixa entre pedra e pedra, os irmaos pelejando por ser os primeiros em recolher as ervas, o cheiro a verao. Voltar a procurar no ceu as cores que adiantam o que vai vir, se é vermelho alaranjado o verao vai ser bom, seco, com calor, se é azul clarinho pode haver dias de frio, se é cinzento ameaça a chuva. Desejar cada ano o vermelho alaranjado, a cor do lume, desejar cada ano que o verao comece, que a noite seja curta e mágica, ser céptica com os contos de meigas e os remédios do avô, só para descobrir vinte anos depois que essa magia é a única em que podes ter fe. Acreditar.
apenas respirar, olhar o dia alvorecer e deixar passar, surpreender a vida aceitar que o mundo não é fermoso e ainda assim... sentir o frio na pele e acalentar um verão escolhido para mim, jogar longe a pluma e a fe, alimentar o silêncio e acreditar
Um bocadinho por fora da vida, da tua. Espectadora dum filme que é a tua vida mas não é. Tudo tão sem sentido. Tão incompreensível. O único que realmente compreendes é a dimensão da matéria. O espaço que ocupas da unha do pé à ponta do cabelo. O teu peso exacto. Os miligramos que fazem a diferença. O resto, assunto para a poesia e essa, hoje, agora, foge de ti. Saudades da poesia, das palavras que acariciam essa parte da
existência que não podes medir.
Breve e diminuta, uma miléssima parte dum grauzinho de areia que ficou colado à sola dum sapato, que viaja colada ali tam ao acaso que tudo tem o seu sentido e o seu caminho. Já o sabia Cortázar: a casualidade é o menos casual das nossas vidas.
Essa sola do sapato é também pouco casual.
O seu caminho, o mesmo que o meu. Só resta lutar contra ou deixar-se levar -deixar-se pisar-, só resta encontrar aos outras miléssimas partes do grauzinho, os outros grauzinhos, as outras pás de areia, as outras praias, os outros ocêanos, os outros Universos aos que também -ou sobretudo- pertenço. Perder-se neles que é outra forma de encontrar-se.
Não há significado,
não existe a linguagem, não há dicionários nem gramática correcta
da vida
que tudo é inconsciente e inconstante,
que nada é
se não o tocamos.
Limpas as nódoas no cristal sem perceber que o negro está por trás. Não há cores na borrasca. Assopras as nuvens e tens esperança. Vã, dizem os materialistas. Nada se pode contra o final! Mas não escutas. Sopras, sopras, sopras... Sabes que existe um Sol além da escuridão. Um Sol pequenino e mole. Não precisas de todas as cores do arco íris para acreditar. Apenas claridão.
Porque tudo existe e cada cousa tem o seu lugar. Porque inspiras 30 vezes por minuto e a Terra gira. Porque acreditas na sabedoria que te faz sentar de novo no sofá e esperar. As nuvens passam e o mundo volta a começar.
Diz a wikipedia:
Um buraco negro clássico é um objeto com campo gravitacional tão intenso que a velocidade de escape excede a velocidade da luz (299.792,458 km/s, equivalente a 1.079.252.848,8 km/h). Nem mesmo a luz pode escapar do seu interior, por isso o termo "negro" (cor aparente de um objeto que não emite nem reflete luz, tornando-o de fato invisível).
O meu particular buraco negro tem nome (e mesmo pode que apelidos), e no seu interior existe luz. Apavora-me o seu campo gravitacional mas estou tramada, já nada se pode fazer para evitá-lo. Deixo-me atrapar por ele e fico surprendida. Nada de assustador nessa atracçom, será que a minha velocidade é maior que a da luz.
É mesmo fácil deixar-te cair no fundo. Que a nostalgia e a tristeza te arraste até assinar actos com os que não concordas. Ficar mais no fundo ainda quando és consciente da velocidade da caída. Ter pena de ti. Ter vergonha de ti. Deitar a culpa na lua cheia, na pressão atmosférica... E ser consciente do apertada que voltas ter a mão, segurando com força algo que apenas é possível segurar se deixares solto. É por isso que consegues abrir a mão aos poucos e subir de novo, olhando para o abismo, acreditando que é igual de fácil estar na cima que no fundo. Escolhes a cima.
Levo a cabeça adiantada. Sempre 15 minutos por diante da vida. Ou 15 dias. Um relógio desajustado é sempre uma máquina assustadora. Não se deve brincar com o tempo. Trato de ajustar a hora com um esforço de herói antigo. Mas já se sabe, os relojoeiros advirtem: as agulhas do relógio só podem avançar. Assim, condenada a levar a cabeça adiantada enfrento a vida.
Sintaxe do amor impossível: erro por falta de concordância.
O mundo tão grande e tão pequeno, tudo na mesma vez. Pequeno de mais para estar no mesmo dia em dous mundos, dous climas, dous cheiros, dous (milhons) de emoções diferentes. Um mundo tão grande que cria um abismo impraticável aqui ao meu lado, no mais perto, no coração. Um abismo que causa enjoo só de olhá-lo. A beira desse abismo é mole de mais, podes pisar em qualquer momento e esbarrar, ficar do lado do nada. Do lado em que nada vale, em que ninguém vale.
O fastio às vezes de viver intensamente. Cansa tomá-lo tudo tão à sério. Saber que no mundo há muita podredume e, talvez, essa podredume seja mais real do que qualquer flor bem cheirosa do jardim. Mais real e mais cinematográfica a grande debacle do mundo, mais contável que os pequenos sucessos de cada dia. A alegria sempre é minúscula se compararmos. Não cotiza no mercado, o seu valor não é quantificável, não existem milhonários de alegria.
No entanto, até a podredume mais imunda é abono no jardim.
Apesar do faz de conta, do treinamento para ter tudo baixo controlo, da contínua medida das coisas... Apesar do hemisfério direito e também do esquerdo, do cérebro a construír estruturas sólidas e explicações exactas... Apesar de não acreditar em deuses nem Iemanjá, apesar de ter tudo agarrado com exactitude... Apesar.
Existe um dia no calendário e umas quantas riscas nos dias anteriores a ele, uma contagem cara atrás. Existe um bater mais forte do coração, uma esperança linda e perigosa, uma confiança além da fe. Existe um desejo, uma necessidade de que tudo páre já e comece de novo. Existe uma distância física que não concorda com nada.
Apenas mais vinte e quatro dias.
Às vezes o mundo te surpeende com o seu rosto mais inconsciente. Nesse rosto habita a imprudência e o impudor. É uma corrente que flue vertiginosa e imparável. Se não tens uma boa póla, uma árvore antiga e dura a que agarrar-te, arrasta-te com força, dá golpes no teu corpo, faz com que te abatas a outros corpos e cospe-te em qualquer beira.
Despida, com as marcas roxas dos golpes, desorientada, com dous ou três cadáveres ao teu redor, outros corpos que arrastache na tua inconsciência, tratas de voltar ao lugar do começo. Nadar contracorrente é heroico, é épico, mas impossível.
Não há solução para esta ocasião. Por isso, abandonas esse rio e mergulhas noutro. Nesse, sabes perfeitamente, não vas deixar de agarrar a árvore.
Que é o mesmo que dizer regressos. Retornos necessários e impredezíveis, a vontade de escrever, a necessidade de escutar, as lembranzas. A nostalgia não, essa não volta, apenas ainda não se foi.
Voltas.
Que é o mesmo que dizer giros. Viravoltas entorno a uma noite que é dia ao outro lado do oceano. Viravoltas entorno a um verao que é inverno noutro lugar.
Voltas.
Retornas ao silêncio e a desinspiração.
Média vida afastando flashes, com medo a que luz fique e já não seja possível olhar sem ser através dela.Vivo agora baixo um foco de alta potência, com a seguridade do inevitável. A natureza dessa luz vai além das minhas capazidades, dos meus recursos. Fico abaixo, apenas grudada a essa energia. Não adianta desligar.
Tenho um tempo em suspenso, um tempo que fica fora do tempo. É só para mim (e nem tanto), vou ficar gostando dele, com a leveza e a lentitude que requer um tempo meu, apenas meu. Neste tempo há algo tão especial, tão natural, que não sou quem de descrever. Estou eu, tomara que pudesse escrever como soa neste tempo esse eu. Pronunciá-lo fai parte dele. Estou eu. E não estou só.
Parece impossível que exista mundo além desta ilha de terra, fraga e vento. Ficas atirada na relva, submergida em ensonhações, lembrando outra vida que também tés, uma vida em que há carros, ruas, trabalhos, copas... A quilómetros de distância física, a anos luz de distância global. Ficas em suspenso para atrapar este minuto, este instante em que apenas existe a erva verde, o vento, as folhas de carvalho e uma dúzia de mosquitos que fazem de ti o seu banquete.
Não é preciso estar em todas as situações do mundo para conhecer a sua música, para saber dos movimentos, do ritmo do coração. Pode que nunca fosses abandonada, mas a desolação que sentes em domingos de chuva com os telefones silenciados pertence à mesma melodia. Talvez não tenhas sentido a paixão amorosa que linda com o esquecimento, mas a alegria que sentes apenas por olhar um rosto, o nervosismo dos minutos antes de encontrá-lo, as estupidezes ditas como se fossem as únicas verdades possíveis fazem parte da mesma sintonia. O abraço dum menino ao que acabas de oferecer uma larpeirada tem o tremor do agradecemento filial. Sim, não é preciso experimentá-lo tudo. Apenas ter o ouvido atento e o coração aberto.
Para o resto das cousas, para as que é impossível compartir, para as que não tenhem nome, para as que não deveriam exisitr, respeito.
Contra a fealdade o prazer. Porque a vida já é suficientemente complexa e os acontecementos sucedem sem necessidade de ajudá-los. Porque as desgraças nunca venhem sós (sabedoria popular). Por isso, dança comigo até o fim do amor, abraça-me não como se fosse esta noite a última vez mas como se fosse a única. Não me contes agora a dor. Vamos deixar que a música se acabe e a pele transpire as tristezas. Vamos ficar colados enquanto dure. Vamos fazer que a Terra não pare, que continue a girar apesar. Vamos perpetuar a dança como quem perpetua uma espécie, como quem acredita na salvação. Contra a tristeza o prazer.
Cada dia novo, sem clasificações nem medidas. O prazer. A descoberta. Viver de novo cada repetição como se não tivesse existido nunca. Primeiras vezes cada dia, em cada olhada, em cada morango com sumo ou cada copo de vinho. Tudo na vida deveria ser uma descoberta. Até as repetições.
Se os exames se fizessem sobre as matérias certas estariamos todas reprovadas. O que se passa é que os exames são sobre cousas absurdas como o Cid Campeador ou o seno e o coseno. O que se passa é que só nos perguntam se há quatrocentos e tantos anos se descobriu o que... Há que começar a mudar a dimensão da tragédia.
Pintas uma risca nas pálpebras, passas com carinho a escova do cabelo, reparas um pêlo mal depilado que teima por saír. Duvidas diante do guardarroupas uns minutos, demoras em decidir que é que combina bem com o teu dia, com o teu ânimo. No espelho afalagaste, diste o fermosa que estás hoje, o bem que levas os anos que figeche não há muito, o bem que levas a tristeza e esse amor a apodrecer e fazer pouso. Por se isto não chegar sobes encima duns sapatos de saltos comprados especificamente para uma situação assim. Sais à rua.
Como não dá certo, compras um maço de tabaco e procuras-te uma cortina de fumo.
Permitide-me esta excepção roubada de dous sítios diferentes:
O Professor está sempre errado.
O material escolar mais barato que existe na praça é o professor!
(JôSoares)
É jovem, não tem experiência.
É velho, está superado.
Não tem automóvel, é um pobre coitado.
Tem automóvel, chora de "barriga cheia'.
Fala em voz alta, vive gritando.
Fala em tom normal, ninguém escuta.
Não falta ao colégio, é um 'caxias'.
Precisa faltar, é um 'turista'.
Conversa com os outros professores, está 'malhando' os alunos.
Não conversa, é um desligado.
Dá muita matéria, não tem dó do aluno.
Dá pouca matéria, não prepara os alunos.
Brinca com a turma, é metido a engraçado.
Não brinca com a turma, é um chato.
Chama a atenção, é um grosso.
Não chama a atenção, não sabe se impor.
A prova é longa, não dá tempo.
A prova é curta, tira as chances do aluno.
Escreve muito, não explica.
Explica muito, o caderno não tem nada.
Fala correctamente, ninguém entende.
Fala a 'língua' do aluno, não tem vocabulário.
Exige, é rude.
Elogia, é debochado.
O aluno é reprovado, é perseguição.
O aluno é aprovado, deu 'mole'.
É o professor está sempre errado, mas, se conseguiu ler até aqui, agradeça a ele.
(Fonte - Revista do Professor de Matemática, no.36,1998.)
E falando em agradecer:
filosofia da mobília
a esta princesa chega-lhe uma enxerga e faz um retiro
[oferece-lhe também a aristocrata ervilha]
a esta guerreira basta-lhe um sofá e constrói um descanso
a esta ratinha abondam-lhe duas estantes e rilhas nos livros
rilha que rilha
a esta branca de neve dá-lhe um espelho e revela-se ilimitada
eis a mobília necessária para imaginar um paraíso.
Susana Sánchez Arins, (De)construçom.
Há frases muito bonitas que les e te seduzem. Frases pensadas como um doce para que saborees e goces como um prazer primário. Costumão servir para autoafirmar-te, sentir-te melhor, acreditar um pouco mais nas tuas limitações. A pouco que fiques parada, que as releias, reparas na falácia.
Rememoro uma da adolescência, copiada ritualmente no começo do caderno "O importante não é mudar o mundo mas que o mundo não te mude a ti".
Não seria nem a metade do que são se o mundo não me tiver mudado a mim. Se a vida não fosse limando rigideces, se não fosse colocando-me no meu ridículo lugar, se não me reduzisse ao tamanho justo... Que tipo de estúpido egocentrismo pode fazer que acredites tanto na tua certeza que não precises mudar? Qual é a dimensão dessa ignorância?
Provisionalmente, acredito noutra frase menos vistosa, sem fogos artificiais nem figuras retóricas. "O importante não é que o mundo não te mude, mas que a mudança te faga melhor pessoa."
Diz Mia Couto "Acredito que a essência do Homem e não ter essência". E fico desapontada. Que faço eu neste lugar mas que procurar essências, as minhas e as do Homem (com maiúscula ou minúsculta tanto faz, apenas é o mesmo homem). Talvez seja que a essência da Mulher é ter essências, em plural ilimitável e por isso ainda continuo a procura. Sei, com a incerteza na que já estou certa de habitar agora e para sempre, que esta é a procura que me manterá viva.
Mais adiante, Mia Couto reconcilia-me com ele e o Homem "No início, viajámos porque líamos e escutávamos, deambulando em barcos de papel, em asas feitas de antigas vozes. Hoje viajamos para sermos escritos, para sermos palavras de um texto maior que é a nossa própria Vida."
Sou fraca, as estações abanam-me e levam-me a onde querem. Se é outono amorrinho no sofá com copa de vinho, talvez charuto e sempre livro. Um espectáculo, um quadro, um tópico mais duma vida cheia de tópicos. Se é inverno faço o mesmo mas com um cobertor encima. E no canto de copo de vinho farto-me de antidepressivo chocolate.
Na primavera, a gente sabe, é um vir e ir continuo. Uns dias no cumio do monte, a gritar a felicidade porque não cabe dentro; outros, fazendo mergulho pola nostalgia e lamentando ter o que tenho e não ter o que desejo. Outro quadro tão parecido consigo mesmo. Outro tópico de entre os tópicos.
Sou forte, dou-lhe sempre a volta as estações. Sou capaz de gritar a felicidade no inverno e amorrinhar no verao. Apanhar a nostalgia aí bem onde lhe doi, olhá-la bem enfrente com a confiança que dão os muitos anos compartidos e ensinar-lhe os dentes. Não lhe tenho medo.
Sou tão predezível. Não é que sempre faça o mesmo ou que sempre tenha os mesmos pensamentos, dúvidas, confortos... Não. É que tenho o de toda a gente. Já li o roteiro em milheiros de filmes e em centos de livros. Já sei o que sucede. Agora são os 34 e toca sentir desta maneira, desfazer as malas por fim e guardar a roupa. Talvez deixar o saco-cama no carro para agarrar-me um tempo mais à juventude. Mas depois dos 34 virão os 35 e será... como toda a gente.
Não, não sou nada original. Mas olho-me no espelho e sou capaz de suster-me a olhada. Há algo nessa imagem que me satisfaz, algo de repetido, de visto, de predezível.
Sou eu... tão humana.
Voltar ao passado só um minuto. Tão leve como uma pena levada polo vento. Ficando em suspenso como ela, sem itinerário. São necessárias poucas cousas para voltar ao passado. Uma carícia no cabelo, uma foto, uma olhada... Tão fácil.
O que não é tão fácil é o futuro.
Quando vos falte nestas páginas, quando notedes a minha ausência nesta janela que nem é oral nem geográfica, alegrade-vos. Nesses dias estou vivendo para mim. Com um limite claro entre eu e o mundo. O mais provável é que não vos telefone, que não me encontredes pola rua e, se me vedes, estarei em absoluto silêncio. Não vos preocupedes nem me achedes em falta. Encho-me de mim mesma para ter algo que oferecer-vos a próxima vez.
Há conhecimentos certos e inexplicáveis. São verdades absolutas que não se podem demostar empiricamente.
Um dia, na rotina geral dos dias sentes uma variação. Pode ser apenas um silêncio mais longo do habitual, uma olhada que se sostém uns segundos mais que a anterior, a sombra duma lágrima, uma mão que afasta no ár um insecto que não existe. Há multitude de sinais quase imperceptíveis que chegam a ti e são a verdade universal.
Às vezes dá-che medo conhecer a verdade. Esse insecto que não existe e a mão teima em afastar. Existe uma clarividência assustadora nas pequenas e imperceptíveis variações dos dias. Agarraste a ela porque é a única verdade inamovível.
"A vida é um erro cheio de cousas maravilhosas -a amizade, o amor-, mas um erro. Ir da inexistência à inexistência é um assunto estranho, não é? E isto a mim não parece metafísica. São factos. Ao fim percebes que a vida é um curso preparatório para a morte. Um aprende a conviver com o medo. Já que é um erro vamos atravessá-la da forma mais consciente possível, aproveitando as cousas boas e lutando contra as injustiças."
(desculpai a ousadia da tradução)
O deslocamento como terapia. Funciona no imediato, afastas a cabeça do centro do problema e o problema desaparece.
Lástima que já tenhas lido a Kavafis, que os seus versos te devolvam à realidade, e a realidade volte ao teu cérebro. A fantasia do deslocamento desaparece e voltas a estar sem cura.
Não há exílio possível mas que o exílio interior.
Que parte da tua vida continuas a viver para ti? Não fará tudo parte do espectáculo? Às vezes, o único autêntico parece esse tempo deitada no sofá, completamente fora do mundo. Sem nada para fazer.
O resto dos dias assemelham-se demasiado a um espectáculo. Cada movimento parece um pedaço de coreografia para o público. Olhai-me, olhai-me como vivo. Este é o meu corpo, esta a minha forma de caminhar, esta a minha voz que modulo para vós, o meu olhar profundo, os meus pensamentos filosóficos, o meu sorriso sedutor... Tudo para vós.
Tudo menos os minutos em que, completamente quieta, mesmo suspeitosamente quieta, não tenho nada para fazer. Não quero nada.
O vazio apenas dura uns minutos, nem sequer diários.
Show must go on.
Di Daniel Salgado em Días no imperio:
todo amor é platónico, raquel,
mirarte. a historia
aínda non sabida pero que chega
pola mañá.
a unidade dos condenados.
a terra que pesa nos pés. toda
guerra é civil e o lugar natal,
húmido. síntese
o lique nos ollos, que foi
do amado?
o muro de pedra,
a gándara escavada,
a casa alta,
o comezo dos invernos,
as mans de estares.
o poema cando non hai presenzas abondo.
e
do que veña,
apenas un regreso, aquela cidade
ardida de adeuses ou os espazos compartidos
a destempo,
raquel.
(Tão a destempo)
Às vezes a lógica das cousas fica do revês -ou do direito, que diria Cortázar-, e procurando a explicação mais simples apenas és capaz de encontrar a difícil. A errada. Às vezes parece que o mundo pára porque um telemóvel não responde e não podes confirmar a cita que tinhas. Não achas possível solução alguma, talvez, pensas, tenha sucedido algo de muito grave para que não apanhem o telefone quando tu ligas. É impensável pensar que simplesmente, o telefone não exista. E continuas sem achar solução.
No lugar da cita, uma menina bonita espera que chegues. Estás a pouco mais de trezentos ou quatrocentos metros do lugar. Mas não existe nenhum mecanismo no teu cérebro que te leve até ali. Simplesmente. Fácil. Caminhando os duzentos, trezentos passos que em cinco minutos te colocariam ao lado da conversa, do calor, das olhadas limpas, das conexões cortazarianas.
Na casa, outra ferramenta tão maravilhosa como inútil neste caso, dá-che a solução, a simples, a verdadeira. Ficas terrivelmente desapontada porque tinhas verdadeira vontade desse encontro. Mas também pensas, como Cortázar, que talvez a lógica do mundo seja outra, e este desencontro, talvez, também tinha que ser. És capaz de transformar o desapontamento e torná-lo, de novo, em verdadeira e enorme vontade do encontro. Na próxima ocasão.
O problema é que agora já não há sol, não tenho a luz para evitar a metafísica. A chuva convida à melancolia, convida a música lánguida e os sentimentos lentos. Apesar do ruído que ao meu redor fazem um monte de adultos com um computador diante das mãos. Estou só, apesar do ruído.
Apenas vontade de autoafirmar-me, de evitar os risos e ficar apenas com um copo de vinho e um gosto de chocolate preto na ponta da boca. Preto, sem açúcar.
O mistério das coisas? Sei lá o que é o mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério
Quem está ao sol e fecha os olhos,
começa a não saber o que é o Sol
e a pensar muitas coisas cheias de calor
mas abre os olhos e vê o Sol,
e já não pode pensar em nada,
porque a luz do Sol vale mais que os pensamentos
de todos os filosófos e de todos os poetas,
a luz do Sol não sabe o que faz
e por isso não erra e é comum e boa.
(...)
Fernando Pessoa
Há poucas cousas mais puras que um corpo nu. Não existe a mentira. Não se pode enganar ninguém com todos os graos, as nódoas, os pêlos enquistados, os acúmulos de gordura à vista de quem queira olhá-lo
Não conheço uma forma de entrega mais generosa.
Existe amor além das palavras, além das minhas, compreenda-se. Mesmo existe quando digo não. Quando tento esconder a olhada porque me apanharam in fraganti e pode que as palavras mintam mas os olhos não. Sei que esse amor nada muda, que o mundo continua a girar na mesma direcção e fazem falta as mesmas 24 horas para dar-lhe a volta ao Sol. Que continuo a estar só. Da forma em que se está só quando amas a quem não te ama. Também sei, como se sabem as grandes verdades -com desconfiança- que não vou esperar. Não estou feita da massa que se fazem os dramas, sofro com um sorriso na boca e choro sem fazer ruído. Uma lágrima que esvara por uma meixela é uma música triste davondo.
Sei que o que sinto hoje amanhã terá uma cor diferente. Por isso não sou trágica. Terei uma nova menstruação e recuperarei a força.
O amor seguirá, mas eu também.
Cinco maravilhosos discos na aparelhagem, música de verdade para escutar escutar. O Sol que entra pola janela, mesmo o ár frio que entra pola janela, aberta. Dous jornais com todos os suplementos possíveis no chão. O jantar feito. O tempo. Todo o tempo. Um caderno real para escrever o que às vezes não pode ser virtual.
Havia tempo que não me sentia tam bem, embora o constipado.
Estou tentada de cair, dizer tudo aquilo de que para o 2009 saúde e desejos cumpridos. Tenho tentações de cair nos tópicos, de lembrar-me das amigas que me lem e das que não o fão. Das que estão, estiverão ou estarão. Lembrar-me das ausências embora façam tanto dano. Estou tentada de enviar-vos mensagens em que vos diga o muito que vos quero e tudo o bom que tedes.
Mas a tentação mais grande é a de deixá-lo estar, nada do que vos possa dizer neste dia será tão fermoso como ter-vos ao meu lado.
Para o 2009, que estejades aí.
O que tenho: uma grande gaveta dentro duma mesa de cabeceira. Abre-se de vez em quando para deixar entrar visitantes e objectos novos, que se movem sem ordem nem controlo. As outras gavetas desta mesa de cabeceira estão igualmente habitadas, abrem-se da mesma maneira e os seus ruídos contaminão a minha. Ao nosso arredor, outras gavetas, outras mesas de cabeceira, outros armários...
Mas alguma vez volto à casa de dimensões naturais. De vez em quando posso escutar a lenha que arde na cozinha, um corvo distante que reclama o seu alimento, um silêncio gigante interrumpido umas poucas veces pola prosaicidade dum frigorífico que começa a funcionar. Um tempo enorme que se estira e se estira permitindo aborrecer-me. E sobretudo, muito espaço limpo e calmo na minha cabeça.
Marcas físicas: olheiras,talvez um pouco mais de gordura arredor da cintura, os olhos ligeiramente vermelhos e um pouco de congestão nasal.
Os sintomas não significam nada, gripe, catarro, uma noite de insónia... Mas o burato abismal entre a minha consciência e o mundo, esse, é inequívoco. Um abismo que devo saltar, quase cada dia, sem ajuda de paraquedas. Há dias em que encontro o valor para fazê-lo, e a cada passo que dou fabrico uma ponte baixo os pés. Outros dias, outros como hoje, só vejo a escuridão.
Tenho necessidade de escolher as palavras mais fermosas para hoje. Escolher as palavras que abriguem a todos com só pronunciá-las. Mas hoje não é dia de palavras. Como não o foram os últimos dias, as últimas semanas. Talvez a tampa que lhes impede sair poda abrir-se quando encontre a mais fermosa, ou apenas quando estar sentada com um ecrã na frente e um teclado debaixo dos dedos não seja uma ameaça.
Eu não posso escrever os versos mais tristes esta noite, não posso dizer que a noite seja estrelada nem tiritem, azuis, astros ao longe. No entanto, a lua cheia embebeda-me de insónia e não posso dizê-la. Não posso dizer o muito que pesam as pálpebras abertas, nem a quantidade de lumes que ardem e não quero apagar. Tampouco posso dizer o tempo, nem tenho linguagem para as mudanças.
E embora acredite em que é curto o amor e longo o esquecimento, não há palavra mais fermosa que essa.
o importante não é o que sintas, nem o que penses. O importante é apenas que acredites. Aquilo no que acreditas existe, e se não existe, não faz diferença.
Há demasiados filmes aí fora que me esperam. Filmes que me contam a vida, essa que não tenho tempo para viver. O meu trabalho dividesse e subdividesse segundo planos perfeitos, programados, com objectivos redigidos com os verbos em infinitivo e os passos a seguir quando tenha tempo a dar passos. Enquanto planifico não caminho.
Há que ser muito inteligente para ser feliz. Não é preciso conhecer teoremas, nem compreender ponto por ponto a lei da gravitação universal. A inteligência da que falo é outra mais difícil, é a de olhar para dentro e reconhecer-se, nos passos cara a diante e também nos retrocessos. Recorrer os caminhos com seguridade embora não levem ao paraíso, ou melhor, recorrer os paraísos com seguridade ainda que não levem aos caminhos. É precisa muita inteligência para ser feliz.
Está fermosa, com esse algo de magia que sempre, cheia ou não, se mete nas veias para que vires um bocado doida. Mais que outros dias.
En el aire conmovido
mueve la luna sus brazos
y enseña, lúbrica y pura,
sus senos de duro estaño
Na minha casa há também algo de comovente, talvez o prato da ceia abandonado no chão ao lado do computador onde tento... Se soubesse o que tento nom precisaria este teclado, nem um ecrã a cores esperando-me. Sim, virar um bocado doida, com o peso dos dias sobre as costas, e essa estranha certeza, essa estranha seguridade. És neste momento mais tu que tu mesma, que qualquer outro dia em que também és tu. Desde as gemas dos dedos que premem as teclas até o pé direito fazendo força sobre o pé esquerdo. Algum dos dous ficará dormido.
Não há música, nada pode acompanhar esta noite perfeita. Nem tu. Nada deveria existir esta noite.
Sempre tão distante do importante. Urgência. Todo para antes de ontem, todo no mesmo mês e com o mesmo sentido: nenhum. Entretanto o importante espera. Fazendo oco no cérebro, pinga a pinga. Deixando orfo o coração.
Tento decidir se me movo em círculos concêntricos ou em espiral. Decidir se o avanço é cara abaixo ou cara cima, e se merece a pena entrar de cheio na vorágine. Nom sei se haverá meta suficientemente atractiva. Mudaram-me os cartazes, e agora está a entrada onde antes se lia saída. Duvido entre pintar um novo luminoso ou apanhar-me com os antigos. Entre as dúvidas, acredito na mudança, nas fases lunares e no calendário maia.
O extraordinário é erguer-se todos os dias cedo. O extraordinário é ter forças para alentar, ir da casa ao trabalho, enfrentar o dia. O extraordinário é atirar uma cana ao mar e que saia um peixe. Sorrir sabendo que cada minuto é extraordinário. Fazer a cama sabendo que a vas desfazer apenas umas horas depois. Cozinhar para ti só com o mesmo carinho de cada vez, cozinhar para os demais e oferecer-lhes tempo, o teu. O extraordinário é amar.
O resto, anedotas. Escrever um romance, uma anedota. A decepção polo fracasso, uma anedota.
Palavras novas para denominar realidades antigas. Autofição. Leio que agora se chama assim isso que tanto practico num lugar que é também um mapa. Escrever duma mesma com a suficiente distância para estar a salvo. Palavras novas e velhos sentidos. A teoria queer da literatura. Apenas para confirmar que na literatura, como na vida, cabe tudo e tudo tem algum sentido.
Colecções de rosários, reencontros, tráfego, fotografias de viagens, lapis de cores, pastas, despertadores, amigas, voltas, rosários de colecções, listas, bons propósitos, emenda, dieta, cursos de línguas, trabalho, ginástica, festas comprometidas, exames, lembranças, jornais, leituras proveitosas, filas, projectos....
Aqui estou de novo, com a minha velha pele tão querida, deixando-me levar pola nostálgia e aprendendo a amar novas palavras e a resgatar as antigas. Aprender a amar "destino" aos poucos, perdendo-lhe o medo e os preconceitos. Aprendendo a amar "diário" com a rotina das felicidades minúsculas. Resgatando "fe" sem pôr-lhe mais companhia que eu própria.
Tudo tão incerto como a vida. Agradeçamos a incerteza.
Tudo agarrado ao estômago sem deglutir, apenas colado a ele. Trago um fio de seda e atiro dele pa-se-ni-nha-men-te. Nada. São mais de sessenta metros de suavidade no meu estômago e nada.Nada se agarra. Por isso experimento com um arame de espinho.
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente.
Pessoa ("Autopsicografia")
Apenas força. E um bocado de felicidade para enfrentar o dia. Se não fosse forte, se não fosse dura agora já estaria rendida. Quando me rinda, caerei com toda a equipa. Herdarei do meu pai o silêncio, essa maneira de passar pola vida sem molestar. Talvez também herde a sua maneira de morrer. Só e sem pedir ajuda, só e sem conforto. Desculpade, apenas passava por aqui. Assim estou, passando por aqui.
Tudo o que era sólido se torna líquido. E vice-versa. Fazer anos tem essa incoerência, o tempo que passa é cada vez mais consistente, mais físico, mais tangível. O presente cada vez mais líquido.
Por uma única vez fui capaz. Na tua frente. Olhando-te directamente meti-me nos teus olhos e vi através deles. Vi exactamente o que tu vias. A cicatriz na tempa esquerda, o nariz longo, um pouco desmesurado mesmo, a boca pequena mas definida, presente, o queixo bicudo. Vi a cara angular, imperfeita, fermosa. Depois fixei-me nos olhos, enmoldurados por umas celhas mal depiladas. Vi as pupilas castanhas e o íris preto e grande, vi além da olhada linda, além dos olhos bonitos. Vi-me na beira do abismo. Então compreendi por que tés medo.
Apenas uma mão apoiada no começo das costas, ocupando o oco da coluna vertebral. Uma carícia leve, que toca o rosto ao passar como ao acaso, e um sorriso nesse exacto segundo em que a olhada se cruza. Um passeio na praia escolhendo cunchinhas para um hipotético adorno no salão, um adorno que nunca será. Atirar dos cabelos como para fazer dano mas sem fazer, uma festa na cabeça. A gargalhada limpa por esse motivo que só tu e ela no mundo podedes conhecer. Uma mensagem ridícula no caderno em que fas a contabilidade doméstica, "you are so beatiful". A repetição de novo de outro lugar comum, outro tópico que é mais uma vez a verdade.
Às vezes saem tantas e tão fácil que por um momento é possível acreditar que existam, que realmente tenham algo que dizer. Ou o que é o mesmo, que tenha algo que dizer. Só que a maioria dos dias do ano, a maioria dos dias deste ano estão em silêncio. Faço força para que saiam, atiro delas porque necessito que se formem. Às vezes apanho uma caneta e apoio no papel, sabendo que a mão acabará por mover-se e dar-me algo. Mentiras. Mas algo do que pido ao fim. No entanto estão dentro de mim e ocupam muito espaço. Cada vez que me movo sinto como encaixam de novo, como o puzzle que devem ser milhares de palavras por dentro do corpo. Deve ser por isso que tenho que mover-me lentamente, com cuidado de não magoá-las, ou o que é pior, de provocar que assentem definitivamente. Estão aí quase como um fantasma, só que eu sei perfeitamente que não há nada de sobrenatural em estar cheia de palavras. E não vão sair. Apenas porque nada do que tenho para dizer se pode dizer com palavras.